A MEDIDA DA SAÚDE – por Adão Cruz

A MEDIDA DA SAÚDE

por Adão Cruz

Torna-se mais que notório o empurrar da sociedade para o buraco negro da ignorância. Uma espécie de doença em que os principais marcadores são muitos dos políticos, ditos profissionais, tantas vezes agonistas da indigência mental. A amarga sensação de mediocridade servida em tabuleiros de prata, a seca da cultura mil vezes pior que a seca da agricultura, os anacronismos nacionalistas, as ridículas teses de todos aqueles para quem o mundo é um jogo de poderes, a exibição da estupidez como espectáculo, a escola da apatia em que o poder enfiou todos os portugueses, a dotação orçamental para a inconsciência e para o baixo nível, a entrega da gestão de valores e ideias nas mãos “democraticamente” eleitas por cartazes e sacos de plástico, traduzem uma profunda pobreza mental, maior que a pobreza de não ter pão. Rasca geração, a dos iluminados da candeia. A dos que têm vergonha de mostrar o rabo e não têm vergonha de mostrar o que são. O universo de grande parte dos nossos políticos e seus satélites tem para eles a grande vantagem de uma conjuntura sem expressão, de um quadro sem cores, de um mar sem ondas de moral e de escrúpulos, em que a corrupção afoga a dignidade, fundindo fins e princípios sem necessidade de percurso. Da cabeça dos governantes à inteligência, à imaginação, à arte, à cultura, à moral e ao dimensionamento de um mundo livre, acreditam eles que vai apenas a distância necessária à articulação das suas cosméticas e biográficas práticas sociais e políticas. E o povo que se lixe. Que se lixe a educação, mãe de tudo, que se lixe a justiça social, alicerce da felicidade, que se lixe a saúde, fermento da vida. A saúde, de que não é agradável falar porque quase tudo o que se diz não passa de panaceia. Para falar sobre saúde é necessário retirar o nevoeiro da frente dos olhos, tome esse nevoeiro a forma que tomar, irreflexiva, conformista, acomodatícia ou acrítica. Para desfazer o nevoeiro, o homem tem necessidade absoluta de dois pares de óculos: um deles é a cultura, não no sentido de um empilhamento de conhecimentos, de um amontoado de ideias e conceitos cristalizados, mas uma cultura entendida como a capacidade que cada um tem de compreender os fenómenos que o rodeiam. O outro par de óculos é o pensamento, catalisador permanente dessa mesma cultura. Pensar é uma forma peculiar de sentir a vida, e a verdadeira forma de compreender o mundo. Só pelo pensamento se entende que o tempo presente vive uma intrincada teia de paradoxos e contradições que leva a sociedade, atingida pelo crescimento e não pelo progresso, a perder o sentido dos valores e referências ético-morais, tornando o ser humano cada vez mais permeável ao irracional.

Abordar o tema da saúde é muito difícil, até porque se encontra escamoteado o verdadeiro sentido de saúde. Falar sobre saúde é muito difícil, até porque os valores humanos foram substituídos pela produção dos chamados “bens de consumo” que asfixiam a humanidade, a pretexto do bem-estar e do progresso. Falar sobre saúde é muito difícil, até porque a limitação dos nossos conhecimentos e os conceitos errados e viciados não permitem o entendimento. A avaliação da organização médica e assistencial é uma tarefa eminentemente política que requer profunda lucidez. Exige do não-médico um esforço de investigação pessoal e exige do médico a redescoberta de uma medicina autêntica, ainda que desenvolvida e apoiada nas novas ciências.

Segundo a OMS, a “saúde é um estado de bem-estar físico, mental e social e não, meramente, a ausência de doença ou enfermidade”. Assim sendo, a saúde não pode ser guiada apenas por parâmetros clínicos e laboratoriais que se limitam a aferir o funcionamento biológico do organismo. O bem-estar das pessoas, a ausência de fome, a habitação condigna, a satisfação das aspirações, o aproveitamento das capacidades individuais, o emprego e a realização profissional, a coesão das relações sociais, a justiça, o combate à solidão, o funcionamento sócio-familiar harmonioso e os mecanismos culturais que permitam rejeitar a estupidificação massiva e manter a estabilidade da população, são factores que desempenham um papel decisivo na determinação do estado de saúde. Grande parte da nossa população e da humanidade em geral, vive num mundo de frustração, num grande emaranhado de ilusões e desilusões, respirando mentira em vez de ar. Temos de nos lembrar que um terço da humanidade morre de fome, outro terço sobrevive a uma cruel subalimentação e a restante parte morre de fartura.

A criação de saúde identifica-se rigorosamente com o crescimento da qualidade de vida, e todos sabemos que a qualidade de vida não se mede pelo número de televisões e muito menos pela anulação dos valores culturais. Para combater as doenças físicas e psíquicas, os males advindos da injustiça e da frustração social, para combater as consequências do envenenamento mental e da natureza, para tratar as enfermidades resultantes do empobrecimento da educação, a sociedade não encontra outra solução que não seja a corrida à medicina consumista. A única que qualquer governo se preocupa em gerir. Desta maneira a medicina de hoje tende a transformar-se numa oficina de reparação e manutenção do homem gasto por uma vida desumana.

A dor esfarrapa o homem. Por isso, a dor e o sofrimento têm de ser olhados como prioridades nacionais. A crueldade inerente à divisão dos doentes em ricos e pobres é digna de um conceito nazi.  A saúde não tem preço, lá diz o ditado. Mas se o tiver, este preço não é de medir nem de pesar pelo preço do linguado, do descapotável ou da casa de praia. Este preço é o preço da dor, do sofrimento, do arreganhar de dentes que o Estado, como defensor da dignidade humana, deve pôr acima de todas as negociatas dos núcleos duros e dos núcleos moles. Se a saúde não fosse comprável, sob a forma de dinheiro ou influências, todos os “responsáveis”, governantes ou desgovernantes, criariam prioritariamente leis e sistemas que os defendessem das insuficiências e fraudes. São estas leis e sistemas defensivos que é necessário criar, partindo do princípio de que é um povo inteiro que precisa de ajuda e alívio, e não apenas os que, com um nome ou um cartão, compram médicos e hospitais. Também o valor moral e ético da profissão médica não se restringe ao valor ético da saúde, ele atinge e ultrapassa o valor moral da própria vida. Porém, a convulsão de mundos e princípios mina os próprios médicos, que acabam por assumir uma cultura de indiferença que alimenta a desistência do homem. Vivemos um tempo marcado por complexas relações, em que o poder económico mundial domina o poder político e este domina o saber, através da metacultura e do silêncio. Da nossa própria contingência tem de nascer a força da criatividade e do entendimento. Captar essa força, entender a educação, a saúde, a economia e a paz, como a riqueza da humanidade, constitui o real atributo de verdadeiros governos.

A edificação de uma política social e de saúde não se pode fazer, apenas, com transitoriedades ministeriais, mas melhorando em todos os campos a qualidade de vida, eliminando prioritariamente o sofrimento, estabelecendo rigorosas salvaguardas que protejam as pessoas de uma produção e de um consumo avassaladores e obrigatórios, geradores de desigualdades cruéis que inundam a terra de desvalidos, humilhados e ofendidos.

 

 

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